Resumo Executivo – PL nº 827 de 2020
Autor: Câmara dos Deputados | Apresentação: 20/05/2021 |
Ementa: Estabelece medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2, para suspender o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, urbano ou rural, e a concessão de liminar em ação de despejo de que trata a Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, e para estimular a celebração de acordos nas relações locatícias.
Orientação da FPA: Contrária ao projeto
Principais pontos
- O Projeto de Lei nº 827, de 2020, dentre outras medidas, suspende, até 31 de dezembro de 2021, os efeitos de decisões judiciais proferidas durante a vigência do Decreto Legislativo nº 6, que de alguma forma imponham a retirada de pessoas em imóvel público ou privado, urbano ou rural, o qual sirva de moradia ou que represente área produtiva pelo trabalho individual ou familiar.
Justificativa
- Ponto central que merece atenção diz respeito à ausência de exigência de pertinência entre os fundamentos da decisão e os efeitos ou consequências do cenário de emergência sanitária. Isto é, não se suspende apenas aqueles atos que se refiram à situação que tenha alguma relação com a pandemia ou que coloquem em situação de vulnerabilidade pessoas duramente atingidas pelos efeitos da pandemia.
- Há suspensão generalizada, sobretudo no que diz respeito à área rural.
- É determinada a suspensão até no caso de execução de sentença em ações de natureza possessória e petitória. Veja, é sabido que tais ações tramitam, especialmente no caso de imóveis rurais, na maioria das vezes, por anos, senão décadas, até que sejam concluídas e sentenciadas. É evidente, nesse cenário, que o fundamento da sentença nada tem a ver com qualquer efeito nocivo causado pela pandemia do novo coronavírus.
- Desse modo, abre-se espaço para situações esdrúxulas, como o descumprimento de contratos de arrendamento, por exemplo, sem que possa haver medida para combater tal ilegalidade. Cria, portanto, verdadeira permissão irrestrita para o não pagamento de contratos de arrendamento ou perpetuação de invasões ou uso irregular de imóveis. Tudo isso é capaz de criar cenário de caos e insegurança no campo.
- O projeto vai além e suspende a eficácia de decisões proferidas antes da vigência do Decreto Legislativo até 31 de dezembro de 2021 (art. 2º, § 2º), o que se revela ainda mais grave.
- Há, ainda, o sobrestamento dos processos que discutam tais questões.
- Como já mencionado, tais processos tendem a durar tempo demasiadamente longo. A suspensão da própria tramitação das ações não se revela medida equilibrada.
- Percebe-se, dessa forma, que o projeto, de maneira inconstitucional, retira todo e qualquer meio de cidadãos protegerem sua posse ou sua propriedade, até mesmo pela autotutela da posse.
- Apesar da restrição da aplicação dos arts. 2º e 3º a ocupações ocorridas até 31 de março de 2021, o fato é que até essa data, aqueles que tiveram sua propriedade invadida ou esbulhada de qualquer forma estarão desprovidos de qualquer proteção.
- A autotutela da posse nada mais é que a expressão do direito constitucional à legítima defesa (oriundo do fundamento da República da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, CRFB/88), diretamente relacionado ao direito fundamental de propriedade (art. 5º, XXII).
- O direito à legítima defesa da posse é, indubitavelmente, desdobramento necessário de outros direitos de estatura constitucional, tais como o direito à moradia, à propriedade, a inviolabilidade do lar, ao livre exercício da atividade econômica e à subsistência digna.
- Assim, o texto do art. 2°, §1°, VI, do PL 827/2020, que retira do cidadão seu direito de autodefesa da posse, padece de inconstitucionalidade ao:
- retirar os meios de proteção da moradia daqueles que tiverem sua propriedade invadida ou esbulhada, em patente violação ao direito fundamental insculpido no art. 6º da Carta da República (São direitos sociais …. moradia ….);
- impedir o proprietário ou possuidor de exercer sua atividade econômica de exploração do imóvel, a qual muitas vezes é sua única fonte de renda. Essa situação atenta, também, contra a dignidade do proprietário e possuidor ao retirar-lhe os meios de subsistência. Portanto, verificada violação direta ao princípio da ordem econômica da propriedade privada (art. 170, II, CRFB/88);
- esvaziar o núcleo duro do direito constitucional à inviolabilidade do domicílio, uma vez que a impossibilidade de autotutela da posse retira a possibilidade de o indivíduo, por suas próprias forças, proteger sua casa (art. 5º, XI, CRFB/88); e
- afastar o direito à incolumidade do patrimônio, que é garantido a todos, podendo ser exercido, quando ausente a força do Estado, por meio do próprio particular na defesa de sua propriedade (art. 144 da CRFB/88).
- Além das inconstitucionalidades acima destacadas, o dispositivo também sofre a mácula da inconvencionalidade, pois esvazia o previsto no art. 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. O dispositivo prevê que “toda pessoa tem direito de uso e gozo de seus bens”. Sendo assim, indene de dúvida que ao se impossibilitar a autotutela da posse há restrição ao direito de uso e gozo dos bens, uma vez verificado o esbulho e vedada o seu combate imediato.
- Desse modo, observa-se a completa retirada de todo e qualquer meio de defesa do esbulhado. Tal pretensão esvazia o direito fundamental à legitima defesa da posse e da propriedade, afetando o regular exercício do direito à moradia, do exercício da atividade econômica, da inviolabilidade do domicílio e da defesa do patrimônio.
- Ante o exposto, a inconstitucionalidade do dispositivo é claramente verificada ao se observar o disposto nos artigos 1º, III; 5º, XXII e XI; 6º; 144 e 170, II; da Carta da República.
- Ademais, é sabido que tem ocorrido graves casos de invasões de terras no país, com relatos preocupantes no estado de Rondônia. O projeto permite a perpetuação de situações como essa.
- Há, no projeto, condição para algumas hipóteses de desocupação de imóvel urbano posta no art. 4º, que se mostra como medida adequada a resguardar aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade em decorrência da pandemia (ocorrência de alteração da situação econômico-financeira decorrente de medida de enfrentamento da pandemia que resulte em incapacidade de pagamento do aluguel).
- Tal condição, contudo, não se aplica ao âmbito rural, a que se volta as preocupações da presente análise.
- Nesse sentido, não se questiona que a retirada forçada de pessoas de locais em que residem ou produzem deve ser feita com cautela, especialmente considerando o momento extraordinário de crise. Mas tal cautela deve ser aferida, principalmente, no caso concreto e diante das particularidades do processo que se analisa.
- Isso, frisa-se, só é possível de ser feito pelo magistrado competente para aquela causa.
- O projeto, portanto, se revela prejudicial à segurança jurídica e social sobretudo no campo, permitindo a manutenção de situações de ilegalidade e o inevitável aumento da violência no meio rural.
- Necessário destacar que o projeto se mostra como verdadeiro fragilizador do direito de propriedade, ao interferir em direito fundamental considerado um pilar da liberdade e do Estado brasileiro.
- O texto apresentado está na mesma linha do entendimento, por exemplo, do Ministro Edson Fachin ao suspender reintegrações de proprietários rurais (RE 1017365/SC e ADPF 742/DF). Não é possível que um dos mais nobres direitos fundamentais seja fragilizado desta maneira, seja em períodos calamitosos seja em situações de normalidade.
- A questão da proteção do Estado em relação à posse e à propriedade no atual cenário de pandemia deve ser feita de maneira coerente e ponderada, sem onerar demasiadamente algum agente.